quarta-feira, 13 de junho de 2007

A Pena De Forrest Gump


A Pena De Forrest Gump
Marco Antonio Spinelli

Médico psiquiatra e psicoterapeuta


- Vó? – Oi? - Ontem eu vi de novo aquele filme que você gosta. - Qual, minha querida? (como se não houvesse muitos filmes que a Vovó amava). - Aquele daquele homem que é meio bobo e fica contando histórias no ponto de ônibus... – Ah! Sei... Forrest Gump...- Isso. - E você gostou do filme? - Gostei, mas não entendi uma coisa. - O que? - Quando começa o filme, tem uma pena voando, que voa, voa, e cai no colo do Forrest Gump. Ele guarda "ela" no livro e começa a contar a história para um monte de gente. - Exato.

- Então, no final, ele abre o livro e ela sai voando outra vez. Para que serve essa pena, heim, Vovó? - Bem, pituquinha, ele explica isso no final. Talvez você não tenha percebido. - Acho que não. - Forrest Gump não é uma pessoa igual às outras: ele tem uma inteligência limítrofe. Não fale que ele é meio bobo que isso é muito feio. Ele tem uma inteligência de uma criança de cinco nos, por isso tem dificuldade de entender as coisas como as outras pessoas.Ë um homem grande com a cabeça de uma criança, não é meio bobo ou retardado, tá bom? - Tá. Você quer saber por que a pena começa o filme voando até pousar no colo do Forrest Gump, e depois sai voando de novo, não é? - Isso. - Então...

No final do filme, ele conta que na sua vida houve duas pessoas que o influenciaram muito: uma foi a sua mãe, o outro, seu amigo que ele conheceu na guerra do Vietnã, que é o tenente Dan. A mãe ensinou para ele que ter uma deficiência não é desculpa para desistir da vida. Ela se recusou a colocá-lo em uma escola para deficientes, e sempre empurrou o filho para frente, sempre o ensinou a não se conformar com as suas próprias limitações. Forrest foi para a escola, estudou, teve um problema na coluna que o obrigou a usar aquele aparelho horrível, você se lembra?

- Lembro sim. - Tem uma cena que a Vovó gosta demais nesse filme, que é aquela em que os meninos valentões correm atrás dele numa caminhonete. Eles querem zoar com ele e até machucá-lo, e a sua amiguinha grita para o menino: Corra, Forrest, corra! E ele sai correndo, de aparelho e tudo, a caminhonete atrás dele, os meninos gritando... À medida que ele corria, o aparelho vai caindo, pedaço por pedaço, e quanto mais ele se livrava do aparelho ortopédico, mais rápido ele conseguia correr, mais ele deslanchava, até entrar correndo em um campo gramado e sumir ao longe, deixando para trás os seus perseguidores... - Vó? - Oi? - Você está chorando? - Não,... Não querida, é que a vovó esqueceu de pingar o colírio (falou isso enquanto enxugava furtivamente algumas lágrimas).

- Por que você gosta tanto dessa cena, Vovó? - Porque Vovó acha essa cena muito emocionante, muito alegórica. - Alê o que? Riu-se, gostosamente. - Alegórica. Quer dizer que ela tem um significado maior do que está na tela. - Qual o significado? - Na vida, a gente fica tentando endireitar tudo, minha querida, e às vezes temos que passar muito, muito medo para podermos nos livrar de nossos aparelhos, de nossas muletas. Forrest descobre que já está pronto, que pode correr como ninguém, como ninguém, e mais longe do que qualquer menino valentão e bobo que se acha grande coisa... Olhou para a neta, que a olhava fixamente. - Desculpe, querida, acho que me empolguei um pouco. - Vó? - Oi? - É para isso que temos medo? - Acho que sim. - Temos medo para tirar as muletas? - E os aparelhos.

E ir para frente. - Legal. Vó? - Fala. - E a pena? - É esmo, já ia me esquecendo... Então, eu falei que a mãe de Forrest Gump o ensinou a nunca sentar sobre seus problemas, a nunca se intimidar com as suas dificuldades. Ela ensinou para ele que, na vida, Deus dá uma série de cartas para a gente jogar o jogo, e temos que aproveitar as nossas cartas do melhor jeito possível. - E a pena? - Já vai, já vai...

A outra pessoa importante na vida de Forrest Gump é seu amigo, tenente Dan. Juntos, eles foram para a guerra, tiveram um pesqueiro, montaram uma empresa e ficaram muito ricos. E o tenente Dan ensinou que na vida, a gente é como uma peninha levada pelo vento, de um lado para outro, e nunca tem como descobrir para onde vai o sopro de Deus..., Nunca a gente sabe para que lado vai a pena. Fez um silêncio grave. - Como assim? - Quando você crescer, vai perceber como nosso destino é caprichoso, meu bem.

Um dia, estamos aqui, outro dia estamos lá, como se tivesse um gozador assoprando a vida para lá e para cá, para lá e para cá. (Fez um movimento com a mão, simulando a pena indo e voltando. A menina acompanhou o movimento com os olhos). - Quer dizer que a gente não sabe para onde vai essa pena? Trouxe-a para mais perto. - A gente não sabe... Mas sabe, quando a gente chega na idade que chegou a Vovó aqui, pode perceber os caminhos misteriosos que a pena toma no ar, até pousar, segura, no colo de Deus.

Mas isso a gente só descobre depois de passar muito tempo tentando adivinhar: Qual a direção do vento? Qual a umidade relativa do ar? Qual o peso da pena? Como o Caos vai comandar a direção que a pena vai tomar? Coçou a cabeça, em seu gesto característico. - Vó? - Oi? - O que acontece quando a gente pára de tentar adivinhar para onde vai essa pena? - A gente se deixa levar pelo vento, minha querida.

- Quer dizer que você dá razão para a mãe e para o amigo do Forrest? Olhou com uma agradável sensação de surpresa. - Isso mesmo! Como você é esperta! Eu dou, mesmo, razão para os dois. A gente joga da melhor forma que puder, com o máximo de empenho, mas também respeita as linhas do vento. Gostou? - Gostei, gostei muito... Sabe, Vó, é tão bom ter você... Será que um dia esse vento vai te levar para longe de mim? Estremeceu ligeiramente. - Não, meu bem...

Por mais longe que vão nossas penas, nosso coração vai estar sempre perto um do outro, tá bom? - Tá bom. Ficaram num silêncio de fim de conversa. - Eu vou brincar um pouco, tá?- Isso, vai brincar de Forrest Gump. - Vou correr até cansar. - Isso. Vai mesmo. Mal conseguiu disfarçar a voz embargada de lágrimas.


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